segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

TEXTOS V e VI - baseados no livro Memórias D'África (Carlos Serrano - ed. Cortez)

V AFRICANIDADE, TRADIÇÃO E MODERNIDADE


O mundo da tradição africana se confunde com a economia de aldeia, com intensa relação com o meio ambiente. Para o africano típico, sua identidade está centrada na família. Na maioria das línguas faladas não existe palavras para primo ou tio, todos são considerados pais e mães e irmãos, assim como não existem tia-avós ou tio-avôs, mas todos são avós e avôs.

Nas sociedades africanas o que une uma família é um ancestral em comum conhecido, presente na memória das pessoas, como uma bisavó ou um tetravô. O culto aos ancestrais está muito presente nessas sociedades porque eles entendem que os familiares que já se foram interagem com os que ainda estão por aqui. Se diversas famílias tiverem um ancestral comum não conhecido, estas compõem um clã. A quantidade de órfãos abandonados é muito pequena porque há sempre um parente ou uma linhagem a que se pode recorrer e adotar essa criança, amplamente incorporada à essa família de forma muito natural.


Para os africanos, a feira e os mercados são, ainda hoje, importante evento social, formando redes organizadas, locais de informação e difusão das notícias, onde se exercita o controle social, onde grupos rivais se entendem, etnias convivem e são confirmados laços sociais. Neste local se realizavam festas religiosas e se afirmavam laços matrimoniais, de negócio e políticos. Os exploradores ocidentais do século XIX, ao chegar na África, nada mais fizeram do que percorrer (desde que pagassem tributos e respeitassem as regras locais por onde passavam) rotas e caminhos conhecidos havia muitos séculos pelos africanos, mais tarde até aproveitados para construção de ferrovias e navegação comercial. A África era um destacado polo exportador de marfim, especiarias, substâncias aromáticas, madeira, escravos, peles raras, penas e ovos de avestruz, animais silvestres e ouro.


O entrosamento entre tempo e espaço é de origem africana. No pensamento tradicional africano espaço-tempo são tão ligados que o uso de relógios e cronômetros não é julgado necessário. A divisão do tempo está sempre ligada à fenômenos climáticos, astronômicos, ecológicos, etc. Para o africano, a vida é uma constante busca de equilíbrio. Ele acredita num sistema de forças (incluindo deuses, ancestrais e mortos) que se expressa desde os primeiros tempos até agora. Este sistema estabelece uma hierarquia de estruturas baseada em critérios onde o mais velho tem prioridade e a vida de uma pessoa não pode ser vista sozinha, mas dentro de um grupo, uma coletividade. Ao ser humano cabe a possibilidade de manipular essa energia (chamada de axé) em seu proveito sem jamais quebrar o equilíbrio do universo de modo que ele possa se perpetuar. Assim, o equilíbrio com o meio ambiente não pode ser violado sob pena de provocar uma perturbação na natureza que se voltaria contra a humanidade.


A força vital está presente em todos os homens vivos e antepassados, animais, vegetais, minerais, objetos e outros seres sem vida, além de qualidades como a verdade ou feiura. A força vital, para eles, foi o princípio pelo qual o universo se originou e se expandiu. Entre os homens essa força rege a solidariedade e a participação ativa dentro da comunidade. Através de rituais o africano se sente pertencente à comunidade e trabalha para o bem do grupo em que vive, porque entende que o grupo não vai bem, ele também não poderá ficar bem. Hoje encontramos esse pensamento vivo nos candomblés do Brasil, por exemplo. Com a escravidão, misturas de culturas que na África ocorriam lentamente, no Brasil, como estratégia e necessidade, essas misturas foram aceleradas porque grupos rivais se viram forçados a estarem juntos e grupos de maior afinidade se viram separados. Assim, precisaram criar estratégias juntos, como uma nova comunidade, para sobreviver ao que estavam sendo forçados a fazer, por que na África, o escravo já existia, mas não era uma coisa, um objeto a ser vendido e maltratado, ele era incorporado à linhagem com o passar do tempo e podia até mesmo constituir família. De repente foram obrigados e servir num sistema de escravidão que desconheciam, obrigando-os a criar novas solidariedades.

Muitos povos africanos, ao invés de criarem símbolos para escrever, se serviram da oralidade. Nas palavras do escritor senegalês Djibril Tamsir Niane:

Há povos que se servem da linguagem escrita para fixar o passado; mas acontece que essa invenção matou a memória entre os homens: eles já não sentem mais o passado, visto que a língua escrita não pode ter o calor da voz humana.

É através da palavra e de contos que se reconstitui a história do povo africano, por isso os africanos dão muito valor à palavra, ela seria sagrada e só pode ser usada para manutenção do equilíbrio e para manter a harmonia. A palavra também contém força vital para o africano. Como diz um provérbio africano: Quem estraga a sua palavra estraga-se a si mesmo.

A arte tradicional africana é um diálogo através do qual os povos e culturas do continente procuram a harmonia considerada fundamental para a reprodução da comunidade. Deste modo, máscaras e esculturas são um suporte para o culto à ancestralidade.

A confecção das esculturas e das máscaras, com base em técnicas africanas em madeira, necessita rituais específicos de criação, como um saber das madeiras a serem escolhidas, um trabalho técnico de talha e um sentido de estética que tem a ver com a visão de mundo do homem africano diferente da estética ocidental. Esculpidas em uma peça única de madeira, as máscaras africanas devem obedecer a um princípio de simetria. Há um relacionamento estreito entre arte e religiosidade na África. Sacerdotes e curandeiros são vistos por eles como uma categoria de pessoas que representam a ligação entre o mundo dos vivos e dos mortos; diferentemente dos feiticeiros, que mantém contato com o “outro” mundo, sacerdotes dirigem suas atividades para o bem. Para que um objeto de arte seja transformado em divino, passa por diversos rituais e palavras sagradas, que podem criar e proteger, destruir e provocar a morte.

O surgimento de grandes impérios e reinos como o Monomotapa, Congo, Kanem-Bornu, Mossi, Lunda, Ghana, Mali e Songhai, não se deu por conta das organizações de grandes trabalhos hidráulicos ou agrícolas, mas do controle do comércio a longa distância ou entre regiões de produtos como ouro, marfim e peles. O senhor destes reinos estava sujeito a regras e proibições que limitavam muito a sua soberania porque eles estavam ligados intimamente com o sagrado e o bem da comunidade. A saúde dele era vista como o bem-estar da comunidade, além de estabelecer um importante elo com o povo, do momento em que subia ao trono ao momento de sua morte.
                                              
                                               Reinos e Populações antigos

Reinos e Populações em 1.350


VI A PRESENÇA EUROPÉIA NA ÁFRICA

Antes dos europeus sequer pensarem em África, os diversos povos africanos já tinham comércios com chineses, árabes, persas, indonésios e indianos. Calcula-se que o tráfico de escravos a que foi submetido o continente, subtraiu aproximadamente 15 milhões de africanos. Mas mesmo assim, ainda em 1880, cerca de 80% das terras africanas eram ainda chefiadas por seus reis, rainhas, chefes de clã e linhagem. Mas a industrialização que ocorria no mundo não permitiria que tal situação continuasse. Sob a doutrina dos três Cs: Comércio, Cristianismo e Civilização europeus deveriam dominar os africanos e suas primitivas formas de religião, política e cultura. Assim, a partir do século XIX, com as “expedições científicas” que passaram a trilhar no interior do território africano, exploradores e missionários catequizadores além de comerciantes trazendo álcool e tecidos acabaram por anestesiar o africano. Um líder queniano (Jomo Kenyatta) assim nos diz:

Quando os missionários chegaram ao nosso país, os africanos tinham a terra e os missionários, a Bíblia. Eles ensinaram os africanos como rezar de olhos fechados. Assim foi. Mas, quando abrimos nossos olhos, percebemos que eles tinham ficado com a terra e nós, com o Livro Sagrado.

Países europeus então começaram a dividir a África em nações que nunca existiram no cotidiano daqueles povos, através de mapas. Basta observar o mapa africano atual para perceber a quantidade de linhas retas ou seguidoras de rios e montanhas. Sem saber o que estavam fazendo, retalharam o continente entre alemães, belgas, ingleses, italianos, espanhóis, franceses e portugueses:

Traçamos linhas sobre mapas de regiões onde o homem branco nunca tinha pisado. Distribuímos montanhas, rios e lagos entre nós. Ficamos apenas atrapalhados por não sabermos onde ficavam essas montanhas, esses rios e esses lagos. ( Lord Salisbury, líder colonialista inglês)

Apenas 4 países ficaram livres da dominação europeia (mas nem por isso deixaram de sentir os efeitos):

EGITO – não foi dominado diretamente, mas era protetorado inglês e foi governado indiretamente por Londres mesmo após sua independência oficial.

LIBÉRIA – protetorado norte-americano

ÁFRICA DO SUL – holandeses e grupos calvinistas europeus instituíram o núcleo dos boer ou africâner, população descendente dos colonos europeus que roubaram terras e escravizaram populações locais e que mais tarde assumiram o controle político sobre a África do Sul introduzindo um sistema de discriminação e dominação branca chamado apartheid, abolida completamente em 1994.

ETIÓPIA – o país foi o segundo Estado a adotar oficialmente o cristianismo, antes mesmo de Roma, e resistiu à invasão árabe no século VII, aos missionários católicos portugueses no século XVI e uma primeira tentativa italiana no final do século XIX.