quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

EntrevistaA Trilha da Democracia
O sociólogo Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira alerta que a sociedade tem um longo caminho para decantação de força e isso não se faz do dia para a noite
Por Sucena Shkrada Resk -  Revista Sociologia


Por Sucena Shkrada Resk
Para o sociólogo e pós-doutor em Ciências Sociais, pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, o pernambucano Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira, a leitura da democracia e da cidadania não pode perder de vista o processo histórico. “As estratificações não representam a verdade absoluta das desigualdades”, disse durante entrevista à revista Sociologia. Com um olhar crítico, e ao mesmo tempo ponderado, sobre os fenômenos sociais sob o contexto da crise econômica desencadeada em 2008, ele analisa que somente quando a sociedade intervém nos processos da nação e do Estado existem, de fato, transformações – que não podem ser virtuais.

Radicado há 40 anos em São Paulo e após duas décadas de docência na Universidade de São Paulo (USP), até hoje ele participa do Centro dos Estudos dos Direitos à Cidadania (Cenedic), na Faculdade de Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), do qual é fundador e coordenador científico. Com essa bagagem, analisou, durante o bate-papo, o panorama mundial da democracia, tratando de temas atuais, como a Primavera Árabe e o movimento Ocupe Wall Street.

COMO VOCÊ ANALISA A PERFORMAN CE DO BRASIL NAS ÚLTIMAS DÉCA DAS, COM RELAÇÃO AO PROCESSO DEMOCRÁTICO?
Diante das definições formais, pode se dizer que estamos numa democracia, pois quando se trata de todas as funções dos níveis de governo, há alternância do poder, existem partidos políticos e as eleições são legítimas e não são fraudadas. Antigamente, “nós de esquerda” dizíamos que era uma democracia burguesa, mas mesmo esta dá garantias em que o cidadão pode se expandir. No entanto, a democracia no mundo todo avançou muito pouco. Na verdade, ela se resume aos aspectos acima e é, de certa forma, delegada. Os eleitores votam de quatro em quatro anos, delegam os poderes e não intervêm mais nos processos da nação e do Estado. Somente a Suíça e alguns estados norte-americanos avançaram, nesse sentido, fazem referendos periódicos com a população. Aqui no Brasil, apesar da Constituição prever, não houve consulta popular. De maneira geral, a democracia política no mundo tem uma definição clássica de oligarquia. Os políticos profissionais manejam a política institucional, sem intervenção do público, das classes de fora. É um sistema que precisa ser muito aperfeiçoado, para que se transforme em algo real, ou seja, para que a minha, a sua opinião intervenham efetivamente nos negócios do Estado.

NA PRÁTICA, O QUE REPRESENTA A CIDADANIA, NO CONTEXTO DE UM PAÍS EM DESENVOLVIMENTO COMO O NOSSO?
Cidadania é poder exercer seus direitos. Os direitos não são naturais, são criações cívicas e urbanas, são construções exatamente da cidadania. Antigamente eram circunscritos aos princípios básicos de votar. Hoje é muito mais, há os direitos sociais, trabalhistas e civis. A democracia, nesse sentido, avança, criando esses novos campos; é ter a capacidade de exercer plenamente tudo isso. Representa um ideal muito mais do que uma coisa real, mas é importante. Ninguém pode ser

"Cidadania é poder exercer seus direitos. Os direitos não são naturais, são criações cívicas e urbanas, são construções exatamente da cidadania. Antigamente eram circunscritos aos princípios básicos de votar. Hoje é muito mais, há os direitos sociais, trabalhistas e civis"

preso sem acusação formal, por exemplo, mas muitas vezes isso acontece. Todos têm direito a um defensor, mas, na prática, a maior parte dos pobres não tem. Por outro lado, no campo trabalhista, há uma série de direitos, que foram uma conquista e uma criação: você não pode ser demitido de seu emprego, sem aviso-prévio. Antigamente, no Brasil, com 10 anos de serviço a pessoa não podia mais ser mandada embora. Há mais de 40 anos, surgiu o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Felizmente são direitos que ainda existem. Já os direitos humanos são os mais difíceis de definir, porque praticamente tudo é direito.

PELO FATO DE O PAÍS REGISTRAR CER CA DE 16,2 MILHÕES DE BRASILEIROS NA EXTREMA POBREZA, COMO VOCÊ AVALIA AS CONDIÇÕES DESSAS PES SOAS COM RELAÇÃO À CIDADANIA?
Essa é uma faixa importante da população, em que o direito é apenas uma miragem. O básico e elementar é comer, quando não têm acesso a esse direito, não conseguem ter pleno exercício da cidadania. A linha da pobreza, na verdade, é um artifício estatístico para estratificar a sociedade em setores de renda e identifica que a sociedade brasileira não teve capacidade de incluir essas pessoas. Isso mostra que a democracia real está longe de ser alcançada.

ESSA SITUAÇÃO REPRESENTA OS EFEITOS DA CRISE DO CAPITALIS MO, E EM ESPECIAL, DA CRISE ECONÔMICA ATUAL?
A crise econômica atual foi desencadeada em 2008 e estourou nos Estados Unidos; a Europa está passando também por uma crise de grandes proporções e a solução não avança. A dos anos 30, por exemplo, deu espaço a reações da sociedade, do Estado e avançou em medidas do chamado estado do bem-estar, que era exatamente para tirar os cidadãos do “azar”. A economia capitalista é muito dinâmica, mas a moral foi abolida dela. A sociedade criou instituições capazes de proteger as pessoas, as classes e as populações contra as mazelas dessa economia. Agora, está havendo uma gradual regressão desses direitos. Isso é um movimento mundial, com diferentes repercussões nos países.

MESMO ASSIM, PODE -SE DIZER QUE O BRASIL, NESSE CONTEXTO DA CRISE ECONÔMICA, ESTÁ SE SAINDO BEM?
Não está se saindo bem. Existe um discurso ufanista, que deve ser criticado. Não há motivo para esse ufanismo. Os

Discurso ufanista » Quanto ao bem-estar e renda, não há nada absoluto. Nossa sociedade ainda é profundamente individual e está entre as mais desiguais do mundo. Aqui não é a África ou a Líbia, por exemplo, onde há forças tribais. Aqui existe uma sociedade capitalista, que não é regida por critérios regionais, familiares ou patriarcais. Hoje o que vale é o mercado. Essa sociedade não demonstra a capacidade de ir mais além.
 números são enganosos. Há uma linha de pobreza definida por critérios econômicos e que tentam levar em conta outros fatores. Os critérios estatísticos não dizem tudo, e o Brasil está entrando no discurso de que “‘superamos a pobreza” e agora é combater a miséria. Todos são conceitos relativos, dependem do conjunto da sociedade. Você pode ter superado a linha da pobreza, mas se outros extratos sociais continuam bem acima de você, continua pobre.

DIANTE DESSE QUADRO, ENTÃO, AS PERSPECTIVAS SÃO DE QUE A SITUAÇÃO PIORE?
Não necessariamente. O que quero dizer é que tudo é relativo. Uma sociedade muito rica, como a dos Estados Unidos, continua tendo pobres. O choque do capitalismo é excludente e o Brasil precisa criar proteção contra ele, com medidas de bem-estar, de segurança no emprego, habitacional. Isso não quer dizer transformar o Estado em policial, mas fazer com que a sociedade seja capaz de exercer a cidadania. É algo complexo. Há cidadãos extremamente ricos no Brasil e no mundo que não deveriam ser considerados cidadãos, nos critérios democráticos e republicanos, pois usam a sua riqueza para explorar os pobres e se ostentar perante a sociedade e debochar dela.

COMO AVALIA O FÓRUM SOCIAL MUN DIAL, ENQUANTO MANIFESTAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL?
É um espaço que promove a cidadania, mas já perdeu força, ficou um pouco desfocado. Não sei se conseguirá ter vigor de restabelecê-la. Cheguei a participar de duas edições, em que vivenciei um ambiente com vozes múltiplas, sem vozes partidárias. Experiências positivas. Cabe à sociedade inventar e reinventar novas formas de estar presente, de atuar e de chamar atenção.

NO BRASIL, CHEGOU TAMBÉM O MOVIMENTO MUNDIAL DOS INDIGNA DOS, E NO CHILE, POR EXEMPLO, OS ESTUDANTES PROTAGONIZAM GRAN DES MANIFESTAÇÕES PELA QUALIDADE E ACESSO DO ENSINO. O QUE TEM A DIZER A RESPEITO?
Os movimentos de mudanças são muito complexos para se resumirem a um simples protesto e ocupação das ruas. Isso já é um sinal positivo, de que a sociedade sai de sua passividade, dessa coisa dos brasileiros de aceitar tudo, mas não quer dizer que haverá mudanças profundas em curto prazo.

QUAL A SUA ANÁLISE SOBRE AÇÕES DE MOVIMENTOS, COMO DA PRIMAVERA ÁRABE E DO OCUPE WALL STREET?
Representam uma reação positiva contra os lados negativos do capitalismo. Ninguém imaginaria que o Wall Street, um polo financeiro mundial, concentrado nos Estados Unidos, tivesse o movimento Ocupe Wall Street. Presumivelmente, lá seria um lugar da bonança, da felicidade. As pessoas estão se dando conta de que na democracia formal é necessário conquistar mais coisas. É preciso que as classes sejam capazes, por meio das organizações, de intervir no negócio do Estado. A Primavera Árabe ainda se apresenta de forma dúbia, ambígua de estados absolutistas, para lá de feudais, sendo a maior parte deles teocráticos. Lá existem sociedades muito complexas, em que não se pode entender tudo em “preto e branco”. Têm uma cultura milenar, que nós (ocidentais) não compreendemos muito bem. Mesmo com toda a introdução do fenômeno das redes sociais nesse movimento, as informações que temos sobre elas são parcas e pouco profundas, de modo que a única coisa que se deve fazer é saudar com alegria essas novas perspectivas, mas quem disser que vê mais do que isso está chutando.
QUAL A SUA PERSPECTIVA PARA A CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DESENVOLVIMENTO SUSTEN TÁVEL RIO+20, EM JUNHO, 20 ANOS DEPOIS DA ECO 92?
A ECO-92 foi muito positiva, ajudou a criar uma nova mentalidade no Brasil e no mundo sobre meio ambiente. Isso representa melhorias da sociedade por ela mesma, mas que não foram tão decisivas quanto se pensou que seriam. Já a Rio+20 será um bom momento para celebrar e para criticar, cobrar e propor mecanismos reais capazes de atingir os objetivos do encontro.


Redes sociais » Não acredito que esse mecanismo substitua a ação concreta nas ruas e nas instituições; é um elemento a mais de comunicação. Não sou muito afeito às redes sociais, não sei manejá-las. O Ocidente deveria aprender que mais comunicação não quer dizer mais democracia necessariamente. A reação virtual e efetiva deve se retroalimentar, para ver se podemos mudar as coisas.

"Os critérios estatísticos não dizem tudo e o Brasil está entrando no discurso de que “superamos a pobreza” e agora é combater a miséria. Todos são conceitos relativos, dependem do conjunto da sociedade. Você pode ter superado a linha da pobreza, mas se outros extratos sociais continuam bem acima de você, continua pobre"


O BRASIL TEM UM PAPEL ESTRATÉGI CO POR SEDIAR O EVENTO?
Quanto ao Brasil novamente sediar o evento, é preciso alertar para que não se percam as diretrizes, por causa do crescimento econômico e sua posição favorável no cenário internacional. Pelo fato de o país ser a principal economia da América Latina, devemos aprender que temos risco de nos tornarmos imperialistas na região. Deveríamos ter aprendido a lição, com a Inglaterra, com a França e os Estados Unidos. O nosso balanço de força com os demais países é desproporcional. Só temos uma relação menos desigual com a Argentina. É bom aprender com a História.

"É preciso fazer com que a sociedade seja capaz de exercer a cidadania. É algo complexo. Há cidadãos extremamente ricos no Brasil e no mundo que não deveriam ser considerados cidadãos, nos critérios democráticos e republicanos, pois usam a sua riqueza para explorar os pobres e se ostentar perante a sociedade e debochar dela"

A CHINA HOJE É UM PAÍS QUE ASCEN DE DE FORMA RÁPIDA NO CENÁRIO MUNDIAL. ISSO SE DÁ TAMBÉM NA DEMOCRACIA?
Hoje o país é uma China “capitalista”, com a manutenção de um sistema político ditatorial muito fechado. China e Índia, respectivamente, fizeram uma revolução capitalista dentro do capitalismo. Parte

Aprender com a História » O Brasil está com um posicionamento estratégico, hoje, por causa do fator econômico, e não por causa de suas virtudes democráticas. Vale lembrar que uma das batalhas mais sangrentas do mundo da qual o país participou foi a Guerra do Paraguai, e não aprendemos nada com relação a isso. A situação chegou a um nível tão obsceno, que o incesto chegou a ser autorizado no Paraguai (mãe casando com o lho), devido à eliminação da população masculina por conta do confronto.

Celso Furtado » Era um servidor da República como poucos. O cuidado com a coisa pública era notório. A sede da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) era em Recife e ele tinha direito de receber diárias quando se deslocava com frequência para o Rio de Janeiro a trabalho, mas nunca as reivindicou. É pelas pequenas coisas que se percebe o espírito republicano.

da crise mundial é decorrente disso. O centro de gravitação mundial mudou para o Oriente, para dois países antigamente pobres, apenas importantes do ponto de vista populacional e pouco representativos, do ponto de vista econômico. Hoje são extremamente estratégicos economicamente. Espero que ambos não sejam tentados a transformar força econômica também em militar, porque aí repetiriam desastres anteriores de hegemonias como Estados Unidos e Inglaterra.

VOCÊ TRABALHOU DURANTE MUITOS ANOS COM CELSO FURTADO (1920 -2004 ). O QUE PODE DIZER SOBRE ESSA EXPERIÊNCIA?
Ele refez as Ciências Sociais no Brasil e a reinterpretação do país, depois do aparecimento dos seus livros clássicos, como a Formação econômica do Brasil. Deixou sua marca entre os grandes pensadores nacionais.

Celso Furtado orientou a política brasileira praticamente por quatro décadas, que só veio a mudar com o neoliberalismo de Collor e de Fernando Henrique Cardoso. Portanto, ele não foi nada incompreendido e malsucedido. Posteriormente, o seu pensamento foi misturado a outras forças sociais e políticas, por força do processo histórico. Suas diretrizes de política de industrialização foram seguidas pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) da Organização das Nações Unidas (ONU), da qual foi diretor.