quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Entrevista Exclusiva com o Professor Marcos Reigota

Posted by Julio Neto On Quarta-feira, Fevereiro 15, 2012 
REALIZADA EM:  14 / 02 / 2012

Professor Marcos Reigota
As questões que envolvem a Educação Ambiental nunca foram tão discutidas – grandes empresas, planos de governo, projetos escolares; todos querem uma carona no bonde da sustentabilidade. No entanto, até que ponto esses debates tem se transformado em ações? 
Para responder a essa e a outras questões, o HistoriaNews.Org (HN) tem a nobre missão de entrevistar e fazer ouvir a um dos mais respeitados pesquisadores brasileiros sobre o tema.      
AUTOBIOGRAFIA: Nasci em Promissão no interior de São Paulo e na adolescência morei em Tupã. Cheguei a São Paulo em 1976, com 19 anos (o disco “Alucinação” do Belchior traduz tudo o que eu pensava e sentia naquela época). Depois de estudar, trabalhar e militar no movimento estudantil e ecológico em São Paulo recebi uma bolsa de estudos e fui, em 1985, para a Bélgica fazer o doutorado na Universidade Católica de Louvain. Desde 1998 sou professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Sorocaba. Depois de muitas tentativas, em 2008 fui aprovado como pesquisador de produtividade cientifica pelo CNPq, na categoria 2 .
TEMA Educação Ambiental: Sociedade Contemporânea, Escola e Sustentabilidade.


ALGUMAS OBRAS:
Ecologia, Elites e Intelligentsia na América Latina;
A Floresta e a Escola: Por uma Educação Ambiental Pós-Moderna;
O Que é Educação Ambiental;
Meio Ambiente e Representação Social;
Trajetórias e narrativas através da educação ambiental.
Verde Cotidiano: O meio ambiente em discussão.
Educação ambiental: Utopia e práxis (com Barbeara Heliodora Soares do Prado)
Ecologistas.
Iugoslávia: registros de uma barbaria anunciada.
“Publiquei inúmeros artigos e capítulos de livros no Brasil e no exterior e você pode verificar isso no meu Plataforma Lattes no site do CNPq.”  
ENTREVISTA
HN Pergunta: Professor Marcos Reigota, em seu livro Ecologia, elites e intelligentsia na América Latina você sugere que a formação do pleno cidadão é o caminho para o soerguimento de um novo modelo de desenvolvimento. Sendo assim, qual seria o papel da escola nesse processo?
Marcos Reigota: Fico feliz em você se referir a esse livro que é um dos menos comentados e que creio, tem sua importância, pois é resultado de minha pesquisa de pós-doutorado realizado em 1993 na Universidade de Genebra e no qual analiso como que a elite universitária da América Latina ‘lida’ com a temática ambiental, após a conferência Rio 92. Nas duas décadas seguintes à ECO-92, muita coisa mudou, de forma positiva, no que se refere à formação dos profissionais nas universidades latino-americanas. No entanto há muito a se fazer. É evidente que nenhum pais se desenvolveu (e penso desenvolvimento como desenvolvimento humano e social muito mais que desenvolvimento econômico) sem educação escolar, pública, de qualidade, de pertinência, com sentido e significado. Infelizmente no Brasil a educação escolar pública é um discurso ideológico e partidário, um “serviço” voltado às camadas mais pobres da população, portanto sem muito ou nenhum interesse por parte dos governos (Quantos deputados, governadores, ministros, intelectuais de esquerda matriculam seus filhos nas escolas públicas? Quantos deles têm os seus filhos estudando nas mais conceituadas universidades públicas?). Quando você me pergunta sobre a escola, penso que não existe “um” modelo de escola, mas sim vários. Se penso nas escolas que visitei, por exemplo, no interior do Amapá (nas comunidades do Carvão e do Pacuí) direi que certamente elas tem dado uma grande contribuição. Se penso ainda nos professores e professoras que encontro pelo Brasil afora, também poderei dizer que certamente muita coisa positiva está ocorrendo. Geralmente os professores e professoras que me procuram estão engajados nas mudanças sociais e têm claro a dimensão política de sua atividade pedagógica. Quando penso nas escolas particulares das grandes cidades que cobram verdadeiras fortunas e que preparam seus alunos para entrarem nas principais universidades públicas do país, diria que não. Ou seja, que essas escolas particulares e sua cumplicidade com as mais renomadas universidades públicas (e vice-versa), muito antes do apogeu do neoliberalismo, aderiram aos rankings, à lei do mais forte e coisas assim, como se tudo isso fosse natural e não a expressão visível e cotidiana de um sistema político e educacional injusto, nefasto e anacrônico que precisa ser combatido.
HN Pergunta: Nos moldes atuais, a escola brasileira tem contribuído para a formação de cidadãos conscientes?
Marcos Reigota: Vou responder a essa questão com um exemplo de uma cena que observei esses dias na Avenida Paulista, quando calouros de uma das mais disputadas faculdades públicas de São Paulo pediam dinheiro às pessoas para fazerem a festa por terem sido aprovados no vestibular. Eles diziam “não somos marginais, estamos pedindo uma pequena colaboração para nossa festa. Não somos ladrões. Somos estudantes”. Não muito distante dali, jovens viciados em crack estavam deitados, sonolentos, sem ter o que comer. Ora, por que a população, alegremente, dá dinheiro a esses jovens para que eles possam fazer a festa e parece se recusar a ver os jovens viciados deitados na calçada? Por que os jovens que foram aprovados (com seus méritos e privilégios de classe) e que não precisam pedir dinheiro à população para fazer a festa, não se engajam, nesse momento, em atividades de solidariedade com os marginalizados? Por que os jovens aprovados no concorrido vestibular reproduzem no espaço público, os discursos mais conservadores relacionados com a violência e agressões e ganham a simpatia da população? Onde esses “meninos” estudaram? Onde irão estudar? Que poder terão de manter a ordem social da qual se beneficiam ou de mudá-la completamente?
HN Pergunta: Numa sociedade onde existem homens famintos (de alimento, saúde, emprego, moradia) dá para acreditar no fomento da consciência ambiental e na formação de um cidadão consciente? Nessas condições, qual seria o papel do Estado?
Marcos Reigota: Já há algum tempo sabemos que a problemática ambiental e ecológica é um problema político, cultural, econômico e social. No entanto ainda encontramos profissionais e lideranças políticas (inclusive com trajetória de esquerda) que consideram tudo isso supérfluo, secundário. No nosso caso, basta ver os impactos sociais e políticos relacionados à Usina Belo Monte, com o Código Florestal, com a transposição do Rio São Francisco, com os transgênicos, com a construção de usinas nucleares, com o desmatamento da Amazônia, etc. para observarmos que tudo isso está relacionado com o modelo político econômico e educacional que no Brasil atravessa décadas. Modelo esse que prioriza uma minúscula parcela da população brasileira (“As mulheres ricas”, os “bonzinhos” milionários cariocas, os artistas e brothers globais, etc.), estimula outra parcela (a chamada classe C) a consumir bugigangas “Made in China” e deixa as pessoas sem nenhuma ou pouca escolaridade na vala comum do salve-se quem puder. O papel do Estado, na construção de uma sociedade justa, na perspectiva ecologista com a qual trabalho, é o de garantir principalmente às camadas mais pobres da população, seus direitos constitucionais, de educação, saúde, saneamento básico, transporte, cultura, etc. Por outro lado, o Estado deveria romper com os monopólios, com as oligarquias e taxar devidamente as fortunas licitas, as transações financeiras inescrupulosas e confiscar as fortunas ilícitas. Numa sociedade como a nossa, em que os bancos lucram como nunca lucraram antes, e um deles faz publicidade afirmando tratar-se de um banco “sustentável’, alguma coisa está errada. Isso exemplifica os usos e abusos que poderosos grupos econômicos e políticos fazem de um ideário como o da sustentabilidade, que levou décadas para conquistar legitimidade pública, minando sua dimensão política e transformadora.
 
HN Pergunta: Numa escala de 1 a 10, em que nível está a escola brasileira com relação à Educação Ambiental (EA) e a construção de uma sociedade autossustentável?
Marcos Reigota: Novamente diria que não é possível generalizar, avaliar, um processo que é múltiplo e diferenciado. Encontro projetos de educação ambiental excelentes e pouco conhecidos e, outros que são muito conhecidos, com patrocínios (inclusive governamentais) de todo tipo e muito ruins. No entanto o movimento da educação ambiental no Brasil é muito importante, no qual se encontra de tudo um pouco. O impacto social e ambiental que esse movimento tem é grande, embora fique aquém das expectativas que a complexidade ambiental envolve, no Brasil e no mundo. Reafirmo que só poderemos pensar em uma sociedade justa e sustentável se a educação, como um direito da população, for uma das prioridades. Como estamos longe de termos a educação como prioridade e direito da população, não podemos nos calar ou acatar passivamente decisões governamentais, quando não concordamos com elas.
HN Pergunta: É possível aliar desenvolvimento econômico, desenvolvimento social e preservação ambiental?
Marcos Reigota: O atual ufanismo em relação ao desenvolvimento econômico brasileiro não se justifica quando observamos os dados do último Censo, ou ainda os índices de desenvolvimento social e humano da ONU. A preservação ambiental é um componente do desenvolvimento social, cultural, político e econômico de uma nação que se quer moderna (em tempos pós-modernos).  O Brasil teria condições de mostrar que a relação entre desenvolvimento econômico, social e ambiental não é só possível como necessário, se grande parte da elite econômica, política e cultural do país não fosse tão conservadora, acomodada e feliz consigo mesma. Por outro lado, as forças políticas hegemônicas no Brasil atual, não estão interessadas nem envolvidas nessa perspectiva, pois defendem de forma ostensiva, ultrapassados modelos de desenvolvimento.
HN Pergunta: Professor, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) concebem a Educação Ambiental como tema transversal, ou seja, não compõe a base curricular como disciplina básica/obrigatória. Você concorda com a legislação de ensino brasileira neste ponto? Por quê?
Marcos Reigota: Os PCNs foram acatados por grande parte dos meus colegas e recusados por outros. Eu faço parte dos críticos dos PCNs e por muitos motivos. Os PCNs têm um componente político que precisa ser melhor conhecido, que, em linhas gerais, é o  estabelecimento de um dispositivo único para enfrentar e  controlar a diversidade. Esse dispositivo vem embalado com discursos sedutores que são repetidos insistentemente, como é o caso, por exemplo, da transversalidade. Ora, se a transversalidade (como foi pensada por Félix Guattari) efetivamente por aplicada, o sistema escolar (como o conhecemos e como o MEC e as Secretarias de Educação insistem em manter) vem abaixo e eu não creio que seja essa a intenção de quem elaborou e difundiu os PCNs no Brasil. Nesse sentido e pela trajetória que tenho só posso estar em posição contrária a todo e qualquer dispositivo de controle da diversidade, ainda mais quando esse dispositivo vem dos aparelhos ideológicos do Estado. Agora vamos nos concentrar nos motivos pedagógicos específicos. A temática ambiental, pela sua complexidade e presença no nosso cotidiano, é entendida das mais diversas maneiras e possibilita intervenções pedagógicas diversas. A educação ambiental como disciplina foi recusada em vários momentos e sempre esse discurso volta e cada vez chega mais conservador, normativo e controlador. É um discurso (o que reivindica a educação ambiental como disciplina), com grande aceitação social, mas defasado dos desafios do tempo presente. Esse discurso reflete uma imagem do passado do que foi a escola e as disciplinas que a compuseram. Tenho afirmado que a educação ambiental é uma filosofia da educação, ou seja, um pensamento sobre a educação e que se quer política. A temática ambiental, qualquer que seja ela num processo pedagógico, tem que ter pertinência, sentido e significado social e cultural para as pessoas, inclusive para os professores. Não é possível falar de meio ambiente (e meio ambiente não é só natureza), sem antes discutirmos o que entendemos por isso, quais são as relações do meio ambiente com nossa vida cotidiana e quais são as possibilidades políticas, sociais e pessoais que temos para interferir nesse processo. Qualquer disciplina escolar, incluindo artes e educação física, pode fazer isso.
HN Pergunta: Na introdução dessa entrevista lê-se uma questão importante: Os debates acerca da Educação Ambiental presentes nas diferentes mídias da informação, nas escolas, nas bancadas do legislativo e nas grandes conferências mundiais tem se transformado em ações?
Marcos Reigota: Sim e geralmente obedecem e seguem os discursos de impacto do momento e, nesse sentido, essas ações duram o tempo que esses discursos de impacto duram (geralmente muito pouco tempo). O que interessa mais é observar como as preocupações, interesses e conversas cotidianas entre professores, alunos, pais e funcionários da escola se transformam efetivamente em ações pedagógicas e políticas de intervenção cidadã. Para isso é fundamental que as práticas pedagógicas ganhem o espaço público para além dos limites de sua própria escola ou da comunidade em que esta escola está inserida. Ou seja: um professor no Amapá pode conversar com seu colega do Rio Grande do Sul. Um professor do sertão da Bahia pode conversar com seu colega de São Paulo, etc. Como podemos fazer isso, sem a interferência do Estado (e suas “conferências nacionais”) ou do sensacionalismo e padronização das “reportagens” dos jornais televisivos? Creio que as redes sociais poderão ser de grande valia para que cada um de nós possa conhecer o que o outro, nosso colega, faz em espaços e condições sociais, culturais e ecológicas completamente diferentes, mas com a mesma preocupação de intervenção e participação na sociedade em que se vive.
HN Pergunta: Professor, baseado em alguns de seus trabalhos recentes de pesquisa, quais seriam os principais problemas que envolvem a questão ambiental e o que fazer diante deles?
Marcos Reigota: Sem dúvida os temas que carecem de mais pesquisas são os relacionados com os grandes projetos desenvolvimentistas como os já citados. As pesquisas que oriento na iniciação científica, mestrado e doutorado estão relacionadas às dificuldades e possibilidades de se pensar e praticar a educação ambiental como educação política, de intervenção cidadã, no cotidiano escolar. Como pesquisador, procuro contribuir com o meu trabalho para ampliar as possibilidades da educação ambiental. Conclui recentemente uma pesquisa, financiada pelo CNPq, sobre os discursos contemporâneos sobre a natureza e suas relações com a educação ambiental, envolvendo os transgênicos e a biodiversidade (os interessados encontrarão artigo  de minha autoria sobre isso no site Scielo). No momento estou fazendo duas pesquisas, ambas financiadas pelo CNPq. Uma delas, mais empírica, é sobre a paisagem sonora no cotidiano escolar de escolas de Sorocaba e Botucatu e a outra, mais conceitual, é sobre a devastação ecológica e o cotidiano escolar na obra do escritor Milton Hatoum.
Professor Marcos Reigota, gostaria de agradecer à sua presteza em nos atender e, principalmente, às contribuições dadas por seus trabalhos na compreensão das questões que se desenvolvem junto à Educação Ambiental.
"Obrigado você pela oportunidade. Espero ter respondido suas questões. Um abraço e bom trabalho."
Professor Marcos Reigota
Edição: Julio Neto Alves
Equipe HistoriaNews.Org 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

TEXTOS I, II e III - Baseados no livro Memórias D'África (Carlos Serrano, ed Cortez)

ÁFRICA E BRASIL: vínculos e complementaridades


Brasil e África têm diversos pontos em comum:

 a tropicalidade, a diversidade do meio natural, a multiplicidade cultural e religiosa;

 além disso, o continente africano está enredado na vida social e cultural brasileira por conta de 350 anos de tráfico de escravos;

 entre 40% e 60% da população brasileira possui alguma ascendência africana, transformando o Brasil no segundo país negro do mundo;

 a influência de línguas africanas no português brasileiro é notável; e

 o refluxo de africanos ex-escravos em direção à África foi de grande importância social ao marcar a presença brasileira em terras africanas.

O Brasil é um país extraordinariamente africanizado; é comum que na África se ignore que certo prato ou costume veio do Brasil, como, entre nós, esquecemos de quanto nossa vida está impregnada de África. O escravo ficou dentro de todos nós, qualquer que seja nossa origem.


 PALOP é a sigla que se refere aos países que adotaram a língua portuguesa como oficial. Eram 5: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe; mas em 2007 a Guiné Equatorial, ex-colônia espanhola, adotou também o português como língua oficial.


I A PERCEPÇÃO DA ÁFRICA

O imaginário europeu desqualificou o continente africano e seus habitantes, assim como, em outros momentos, fizeram contra bárbaros, ciganos, judeus, muçulmanos...

O continente assolado pelo calor foi imaginado, na Europa Medieval, habitado por seres humanos inferiores e semi-humanos além de monstros. No século XIX a África se torna cenário das ambições europeias de “civilizar” o mundo; assim, o continente africano foi dividido e reorganizado de acordo com as ambições de países europeus ignorando o modo como o espaço africano era organizado.

Hoje, a conquista da independência pelos povos africanos iniciou nova desqualificação do continente, que agora é o domínio da pobreza, da anarquia, do subdesenvolvimento, das doenças, das guerras tribais, dos golpes de Estado, do analfabetismo, dos refugiados, da seca e da falta de solução para os problemas. É o afropessimismo, que objetiva a submissão do continente africano ao mundo ocidental economicamente, socialmente e politicamente.



II O ESPAÇO AFRICANO

GEOLOGIA E RELEVO - A base do território africano é um velho planalto datado de cerca de 4 bilhões de anos. Boa parte do continente tem relevo bastante erodido de baixas altitudes (600 a 700 m). Basicamente o continente é constituído por um grande planalto interrompido por depressões, montanhas e maciços. Na parte sul do Brasil e da África existem duas grandes bacias de mesma história geológica, a Bacia do Paraná e a Bacia do Karoo.

Falando em depressões, o Vale da Grande Falha é uma fratura que se prolonga desde a Síria e a fossa do Mar Morto, no Oriente Médio, e adentra pelo Mar Vermelho, centro da Etiópia e interior do continente. Essa falha tem vulcões nas bordas e lagos, como a região dos Grandes Lagos. Entre os vulcões estão o Kilimanjaro e o Ruwenzori. Nesse Vale se encontra diversos fósseis humanos, como a Lucy, uma mulher australopiteco de mais de 3 milhões de anos encontrada em 1974.

As minas africanas fornecem abundantes minérios preciosos (ouro e diamantes), essenciais (ferro, cobre, manganês, estanho e bauxita) e estratégicos (urânio e cobalto), de origem em terrenos geologicamente muito antigos. Os recursos energéticos (petróleo, carvão e gás natural) estão localizados em áreas sedimentares distribuídas por toda África.

A região da Franja de Cobre ao sul da Rep. do Congo é o sítio mais importante do mundo em cobre, rádio e cobalto. A República Sul Africana é outro grande produtor de minérios: carvão, amianto, cobre, ouro, urânio, cobalto, tungstênio, platina, ferro, manganês, cromo, asbesto, níquel, chumbo, diamante e gás natural. A Zona Diamantífera africana se entende pela Namíbia, Angola, Tanzânia, Rep do Congo e Rep Sul Africana. Jazidas de fosfato ocorrem no Saara Ocidental e de bauxita na Guiné. Petróleo é abundante na Argélia, Nigéria e Angola além do Tchad.

Cerca de 40% do potencial hidrelétrico está na África e o potencial de energia solar é o maior do mundo, mas nem o potencial hidrelétrico é aproveitado nem a energia solar. Os minérios não trazem desenvolvimento aos países africanos isso porque as mineradoras são estrangeiras que enviam suas produções para o exterior, não revertendo seus lucros em benefícios para os países de onde extraíram os minérios.

HIDROGRAFIA – Apesar de ter maior disponibilidade de água que Ásia e Europa, os africanos possuem o menor acesso à água do mundo, além disso, em muitas partes há abundância de água, enquanto em outras, a falta é grande.

A Rep do Congo, junto com Brasil, EUA, Canadá, China, Índia e Rússia formam o G7 da água, reunindo 40% de toda água de superfície do mundo. Boa parte das águas do continente (cerca de 35%) não corre para o oceano, correm para lagos e mares interiores. Isso explica área de lagos como o Lago Tchad.

O rio mais importante da África é o rio Nilo, considerado berço das civilizações abissínia, núbia e egípcia. Nascendo próximo ao Lago Vitória, o Nilo percorre pântanos, estepes e savanas, além do deserto do Saara até desaguar no Mar Mediterrâneo.

O rio Zaire ou Congo*1 forma uma das bacias mais irrigadas do mundo e serviu de eixo principal do Reino do Congo, lembrado no Brasil pelas congadas e maracatus.

O rio Níger nasce no maciço Futa-Djalon. No sul do Mali, o Níger se bifurca formando uma grande planície aluvial que ocupa parte do Sahel*2. É um rio de grande extensão de navegabilidade, algo incomum no continente.

O rio Zambeze percorre regiões formadas por planaltos e é cortado por várias cataratas. No curso desse rio se expandiu o Império do Monomotapa.

Outros rios como Senegal, Gâmbia, Okavango, Orange, Limpopo, Rufiji e Cuito são muito importantes para as regiões banhadas por eles, contribuindo para a cultura, história e ecologia das populações que moram em suas margens.

Dentre os lagos, os mais importantes são : Lago Vitória, Tanganica, e Niassa ou Malawi. Estes atingem grande profundidade por serem lagos tectônicos, ou seja, formados na área de fendas.

O Lago Tchad é compartilhado por 4 países: Nigéria, Níger, Camarões e Tchad e passa por sérios problemas de agressões ambientais que podem fazê-lo desaparecer.

Um fato complicador é que quase todas as bacias são compartilhadas, o que gera conflitos quanto à utilização da água.
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*1 A palavra Congo se origina do povo Bakongo, que vive no trecho final deste rio.



*2 O Sahel (do árabe ساحل sahil, que significa “costa” ou “fronteira”) é a região da África situada entre o deserto do Saara e as terras mais férteis a sul, que forma um corredor quase ininterruptodo Atlântico ao Mar Vermelho.Normalmente, incluem-se no Sahel o Senegal, a Mauritânia, o Mali, o Burkina Faso, o Níger, a parte norte da Nigéria, o Chade, o Sudão, a Etiópia, a Eritreia, o Djibouti , a Somália e Cabo Verde



VEGETAÇÃO - A África, localizada em área tropical e constituída de diversas altitudes e latitudes, tornou-se palco para o surgimento de variadas formas de vida. Por isso, a Rep Democrática do Congo e Madagascar, junto ao Brasil, integram a lista de nações concentradoras de megadiversidade *3 .

Nas regiões de clima quente e úmido onde chove muito, ocorrem florestas equatoriais como a Floresta Guineana, a Floresta do Congo e a Floresta Pluvial de Madagascar. No Brasil, a Floresta Amazônica é a correspondente deste tipo vegetal. No interior do continente, de clima mais seco, ocorrem as savanas, e no Brasil, os cerrados. Nas costas africanas ocorrem mangues, lagunas e lagoas tal qual no Brasil.

A grande marca do continente africano se relaciona com os desertos: Saara, Kalahari, deserto Namibe e trechos do Chifre Africano como Ogaden. O Saara (palavra árabe que significa deserto) ocupa 30% do continente. No limite sul desse deserto, o território semiárido com estepes é chamado de Sahel (em árabe, margem).

Diversos oásis ocorrem nesses desertos e são povoados por agricultores, pastores e comerciantes. Diferente do que se vê nos filmes, o Saara não é formado apenas por areia, mas também por solos formados por cascalhos e seixos. Os desertos são a casa de diversas etnias*4 como os tuaregues no Saara e os san no Kalahari.

A desertificação (o avanço das areias do deserto por outras áreas) tem aumentado nos últimos anos devido à práticas de agricultura e pastoreio tradicionais e também devido ao recuo da religião tradicional. O avanço das ideias dos europeus religiosas e políticas estaria favorecendo o desmatamento, pois a natureza deixa de possuir sentido religioso, sagrado, sendo vista como mero recurso que o ser humano pode usar sem problemas porque é um ser superior.

As savanas são caracterizadas por um tapete de gramíneas e árvores dispersas. É nessa vegetação que se encontram girafas, rinocerontes, leões, hienas, elefantes, lobos, chacais, leopardos etc, além das árvores como acácias, baobás e marulas. As etnias mais importantes das savanas são os senufo, mandinga e masai. Diversos Impérios africanos se desenvolveram também nessas áreas como o Mali e o Monomotapa. Esse bioma é um dos mais afetados com a desertificação.

As grandes florestas pluviais da África podem ser subdivididas em sub-regiões de tão diversificadas. São elas: Congolesa, Guineana e Malgache. A demanda por lenha tem eliminado florestas inteiras, além da agricultura.

Devido ao desmatamento as matas remanescentes não são suficientes para manter o ciclo da água, provocando épocas mais prolongadas sem chuva e incêndios florestais, mas um bom exemplo de recuperação ambiental é o Movimento do Cinturão Verde do Quênia, fundado por Wangari Maathai, professora universitária que deixou seu cargo em 1977 e se voltou para esse trabalho de conscientizar as mulheres para proteger e melhorar seu meio ambiente. Em 05 de junho de 1977, o projeto começou com o cultivo de 5 sementes. Em 1992 o projeto distribuiu 7 milhões de mudas, plantadas e protegidas por camponesas em 22 distritos do Quênia.
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*3 Apenas 12 países do mundo estão nessa lista além dos três já citados: Austrália, México, Colômbia, Equador, Peru, Índia, Bangladesh, China e Indonésia.



*4 Lembrando que ETNIA se refere às comunidades humanas de mesma língua e cultura, com estrutura política e social e está associada a um território e/ou uma religião.

TEXTOS III e IV - Baseados no livro Memórias D'África (Carlos Serrano, ec. Cortez)

III ÁFRICA E SUA INTERAÇÃO COM O MUNDO


A África é o berço da humanidade. Essa frase se justifica? Vejamos:

O homem de 6 milhões de anos
Fósseis do mais antigo ancestral humano são descobertos no Quênia e podem ser
a chave para chegar ao elo perdido entre homem e macaco. www.vejaonline.com.br


Por diversas causas o africano se movimentou pelo continente, e o que se encontra hoje são evidências de trocas culturais de milhares anos. Elementos das linguagens khoisan, fonemas e cliques, aparecem em idiomas bantu como o xhosa, zulu e shoto; grupos pigmeus adotaram idiomas bantu; orixás da área gbe foram incorporados aos rituais de yorubas e vice-versa... e muitas outras trocas culturais.


Assim também aconteceu para fora da África: grupos do Chifre africano cruzaram o deserto se mesclando com populações da península arábica.

Assim como povos árabes também se uniram à populações negras, originando, por exemplo, os abexins.

Trocas também sempre existiram na África isso porque o comércio possuía vários significados, não só o econômico. Nos mercados africanos se fortificava o sentimento de solidariedade e a consciência coletiva das comunidades. Um dos produtos mais trocados é a noz de cola (usada na Coca-Cola e na Pepsi), trazida pelos escravos para a América. Como ela é estimulante, se recorria à ela para atenuar a exaustão física. Na Umbanda e no Candomblé também é usada até hoje.


AFRICANOS CRUZARAM O ATLÂNTICO
Existem relatos de que o Império do Mali lançou duas gigantescas expedições no oceano Atlântico formadas por 2000 embarcações em direção à América. Mesmo que não tenham chegado lá, alvo de controvérsias, por si só ser capaz de organizar expedições desse tamanho demostra o poder e o talento desse Império.


Pelo oceano Índico os africanos se encontraram com indianos, árabes, chineses, indonesianos. A presença de correntes marítimas e atuação de massas de ar facilitaram esses contatos, aproximando povos e regiões, misturando culturas.

Esse contato entre a África e a Ásia muçulmana permitiu o surgimento dos swahili, organizada em cidades e fortalezas erguidas ao longo do litoral, deixou marcas profundas, a começar pelo kiswahili, a língua africana mais difundida pelo continente.



IV A IDENTIDADE DO CONTINENTE AFRICANO

A imagem da África foi construída ignorando as diversas etnias, línguas, religiões e culturas. Assim, existiriam apenas populações destinadas a ser sujeitadas, jamais compreendidas. O fato de a África ser um dos berços da escrita foi ignorado pelos europeus. Além dos hieróglifos egípcios, uma das primeiras escritas da humanidade, sistemas como meroídico, núbio antigo, copta, tifinagh (usado pelos tuaregues), ge’ez e bamun foram usados além de ideogramas inventados pelos ejagham.

                                 IDEOGRAMAS NSIDIBI, usado pelos ejagham
                                  HIERÓGLIFOS EGÍPCIOS

A oralidade, forma muito usada pelos africanos para transmitir seus conhecimentos através das gerações, foi entendida como sinal de analfabetismo. Os gritos, contadores de história africanos são responsáveis pelo repertório de contos, provérbios e relatos históricos, obtendo inclusive grande status social por possuírem tal conhecimento. Não é exagero dizer que muitos relatos foram perdidos no tempo.

Quanto à religião, aos olhos cristãos europeus, o africano praticava ritos pagãos e foram severamente perseguidos. Os europeus, reduzindo os africanos à condição de tribos sem identidade cultural, não distinguiam reinos, povos ou etnias. Por isso, na época da escravidão, os africanos raramente foram identificados pelo seu grupo cultural, mas pelos portos nos quais eram embarcados.

Ao norte da África predomina a língua e cultura árabes, principalmente pela expansão haussá no início do século XIX, tendo à frente uma liderança fula, Osman Dan Fodio; esse chefe guerreiro muçulmano controlou um império com centro na cidade de Sokoto, que acabou por influenciar muito além da Nigéria. As populações além do Saara são chamadas de Bilad-es-Sudan, ou seja, País dos Negros. Esse território que se estende do limite sul do deserto ao sul do continente africano pode ser caracterizado, apesar de abarcar tantos povos e culturas diferentes, por uma africanidade, ou seja, um conjunto de valores, posturas e formas de ver o mundo muito próprios:

 Sociedades comunitárias, que vivem pelo consenso e tradição;

 Usam o conceito de forças vitais (axé) encontradas nos reinos vegetal, animal e mineral e que estabelecem uma hierarquia com os humanos;

 Noção de ancestralidade, respeito à memória de familiares que morreram;

 Noção de família extensa, o africano vê a todos como seus irmãos, sendo de sangue ou não;

 Noção de que o poder é sagrado, e quem o possui não pode abusar dele, mas realiza-lo com sabedoria;

 Da não separação entre tempo e espaço, muito usado na modernidade, mas um conceito africano.

Com objetivo de justificar a escravidão, como se tudo já dito não bastasse, os europeus, através da ciência, classificaram os seres humanos em raças, o que não se justifica porque as diferenças existentes entre os seres humanos não permitem classifica-los em raças. Detalhes como cor da pele, tipo de cabelo, altura e formato dos olhos não são determinantes para definir um tronco racial. RAÇA é basicamente um conceito social, histórico e cultural. Biológico é que não é...

A identidade africana tem sido perseguida por diversos líderes atualmente numa tentativa de unir o continente e desenvolver seus países. Uma dessas tentativas chama-se UNIÃO AFRICANA, com 53 membros e muitos problemas para resolver. Como diz o escritor nigeriano Wole Soyinka, a África é um imenso continente, povoado por uma miríade (diversidade) de raças e culturas. Um dos principais problemas para união do continente é a grande variedade de línguas; acredita-se que 30,3% das línguas vivas no mundo, mais ou menos 2.092 línguas, estejam em uso no continente; outro agravante é a centena de religiões tradicionais, cada qual com conjunto de saberes; e a grande variedade de etnias.

É importante dizer que esses fatos podem ser obstáculos enormes, mas de fato não são, porque ainda assim, nada disso foi empecilho para que um africano se comunicasse com outro, porque algumas línguas são faladas por todo continente permitindo minimamente uma comunicação.

As diversas etnias também não são grande obstáculo à organização política, porque o poder político tradicional permitiu e foi capaz de criar mecanismos de solidariedade e convivência entre povos muito diferentes, trabalhando com consensos e mantendo interesses de manifestações culturais e religiosas. Por isso muitos impérios tradicionais africanos duraram mais que impérios europeus, como o Reino do Congo, que completava pelo menos 3 séculos de existência quando os portugueses chegaram em 1492; o Império de Ghana se prolongou por 9 séculos; o de Mali, por 3.




MACHREK e MAGREB
Machrek significa Ilha de Oriente, ou seja, países árabes na península e no que chamamos de Oriente Médio. Já o Magreb é a Ilha de Ocidente, Marrocos, Argélia e Tunísia.

MACHREK

MAGREB


TEXTOS V e VI - baseados no livro Memórias D'África (Carlos Serrano - ed. Cortez)

V AFRICANIDADE, TRADIÇÃO E MODERNIDADE


O mundo da tradição africana se confunde com a economia de aldeia, com intensa relação com o meio ambiente. Para o africano típico, sua identidade está centrada na família. Na maioria das línguas faladas não existe palavras para primo ou tio, todos são considerados pais e mães e irmãos, assim como não existem tia-avós ou tio-avôs, mas todos são avós e avôs.

Nas sociedades africanas o que une uma família é um ancestral em comum conhecido, presente na memória das pessoas, como uma bisavó ou um tetravô. O culto aos ancestrais está muito presente nessas sociedades porque eles entendem que os familiares que já se foram interagem com os que ainda estão por aqui. Se diversas famílias tiverem um ancestral comum não conhecido, estas compõem um clã. A quantidade de órfãos abandonados é muito pequena porque há sempre um parente ou uma linhagem a que se pode recorrer e adotar essa criança, amplamente incorporada à essa família de forma muito natural.


Para os africanos, a feira e os mercados são, ainda hoje, importante evento social, formando redes organizadas, locais de informação e difusão das notícias, onde se exercita o controle social, onde grupos rivais se entendem, etnias convivem e são confirmados laços sociais. Neste local se realizavam festas religiosas e se afirmavam laços matrimoniais, de negócio e políticos. Os exploradores ocidentais do século XIX, ao chegar na África, nada mais fizeram do que percorrer (desde que pagassem tributos e respeitassem as regras locais por onde passavam) rotas e caminhos conhecidos havia muitos séculos pelos africanos, mais tarde até aproveitados para construção de ferrovias e navegação comercial. A África era um destacado polo exportador de marfim, especiarias, substâncias aromáticas, madeira, escravos, peles raras, penas e ovos de avestruz, animais silvestres e ouro.


O entrosamento entre tempo e espaço é de origem africana. No pensamento tradicional africano espaço-tempo são tão ligados que o uso de relógios e cronômetros não é julgado necessário. A divisão do tempo está sempre ligada à fenômenos climáticos, astronômicos, ecológicos, etc. Para o africano, a vida é uma constante busca de equilíbrio. Ele acredita num sistema de forças (incluindo deuses, ancestrais e mortos) que se expressa desde os primeiros tempos até agora. Este sistema estabelece uma hierarquia de estruturas baseada em critérios onde o mais velho tem prioridade e a vida de uma pessoa não pode ser vista sozinha, mas dentro de um grupo, uma coletividade. Ao ser humano cabe a possibilidade de manipular essa energia (chamada de axé) em seu proveito sem jamais quebrar o equilíbrio do universo de modo que ele possa se perpetuar. Assim, o equilíbrio com o meio ambiente não pode ser violado sob pena de provocar uma perturbação na natureza que se voltaria contra a humanidade.


A força vital está presente em todos os homens vivos e antepassados, animais, vegetais, minerais, objetos e outros seres sem vida, além de qualidades como a verdade ou feiura. A força vital, para eles, foi o princípio pelo qual o universo se originou e se expandiu. Entre os homens essa força rege a solidariedade e a participação ativa dentro da comunidade. Através de rituais o africano se sente pertencente à comunidade e trabalha para o bem do grupo em que vive, porque entende que o grupo não vai bem, ele também não poderá ficar bem. Hoje encontramos esse pensamento vivo nos candomblés do Brasil, por exemplo. Com a escravidão, misturas de culturas que na África ocorriam lentamente, no Brasil, como estratégia e necessidade, essas misturas foram aceleradas porque grupos rivais se viram forçados a estarem juntos e grupos de maior afinidade se viram separados. Assim, precisaram criar estratégias juntos, como uma nova comunidade, para sobreviver ao que estavam sendo forçados a fazer, por que na África, o escravo já existia, mas não era uma coisa, um objeto a ser vendido e maltratado, ele era incorporado à linhagem com o passar do tempo e podia até mesmo constituir família. De repente foram obrigados e servir num sistema de escravidão que desconheciam, obrigando-os a criar novas solidariedades.

Muitos povos africanos, ao invés de criarem símbolos para escrever, se serviram da oralidade. Nas palavras do escritor senegalês Djibril Tamsir Niane:

Há povos que se servem da linguagem escrita para fixar o passado; mas acontece que essa invenção matou a memória entre os homens: eles já não sentem mais o passado, visto que a língua escrita não pode ter o calor da voz humana.

É através da palavra e de contos que se reconstitui a história do povo africano, por isso os africanos dão muito valor à palavra, ela seria sagrada e só pode ser usada para manutenção do equilíbrio e para manter a harmonia. A palavra também contém força vital para o africano. Como diz um provérbio africano: Quem estraga a sua palavra estraga-se a si mesmo.

A arte tradicional africana é um diálogo através do qual os povos e culturas do continente procuram a harmonia considerada fundamental para a reprodução da comunidade. Deste modo, máscaras e esculturas são um suporte para o culto à ancestralidade.

A confecção das esculturas e das máscaras, com base em técnicas africanas em madeira, necessita rituais específicos de criação, como um saber das madeiras a serem escolhidas, um trabalho técnico de talha e um sentido de estética que tem a ver com a visão de mundo do homem africano diferente da estética ocidental. Esculpidas em uma peça única de madeira, as máscaras africanas devem obedecer a um princípio de simetria. Há um relacionamento estreito entre arte e religiosidade na África. Sacerdotes e curandeiros são vistos por eles como uma categoria de pessoas que representam a ligação entre o mundo dos vivos e dos mortos; diferentemente dos feiticeiros, que mantém contato com o “outro” mundo, sacerdotes dirigem suas atividades para o bem. Para que um objeto de arte seja transformado em divino, passa por diversos rituais e palavras sagradas, que podem criar e proteger, destruir e provocar a morte.

O surgimento de grandes impérios e reinos como o Monomotapa, Congo, Kanem-Bornu, Mossi, Lunda, Ghana, Mali e Songhai, não se deu por conta das organizações de grandes trabalhos hidráulicos ou agrícolas, mas do controle do comércio a longa distância ou entre regiões de produtos como ouro, marfim e peles. O senhor destes reinos estava sujeito a regras e proibições que limitavam muito a sua soberania porque eles estavam ligados intimamente com o sagrado e o bem da comunidade. A saúde dele era vista como o bem-estar da comunidade, além de estabelecer um importante elo com o povo, do momento em que subia ao trono ao momento de sua morte.
                                              
                                               Reinos e Populações antigos

Reinos e Populações em 1.350


VI A PRESENÇA EUROPÉIA NA ÁFRICA

Antes dos europeus sequer pensarem em África, os diversos povos africanos já tinham comércios com chineses, árabes, persas, indonésios e indianos. Calcula-se que o tráfico de escravos a que foi submetido o continente, subtraiu aproximadamente 15 milhões de africanos. Mas mesmo assim, ainda em 1880, cerca de 80% das terras africanas eram ainda chefiadas por seus reis, rainhas, chefes de clã e linhagem. Mas a industrialização que ocorria no mundo não permitiria que tal situação continuasse. Sob a doutrina dos três Cs: Comércio, Cristianismo e Civilização europeus deveriam dominar os africanos e suas primitivas formas de religião, política e cultura. Assim, a partir do século XIX, com as “expedições científicas” que passaram a trilhar no interior do território africano, exploradores e missionários catequizadores além de comerciantes trazendo álcool e tecidos acabaram por anestesiar o africano. Um líder queniano (Jomo Kenyatta) assim nos diz:

Quando os missionários chegaram ao nosso país, os africanos tinham a terra e os missionários, a Bíblia. Eles ensinaram os africanos como rezar de olhos fechados. Assim foi. Mas, quando abrimos nossos olhos, percebemos que eles tinham ficado com a terra e nós, com o Livro Sagrado.

Países europeus então começaram a dividir a África em nações que nunca existiram no cotidiano daqueles povos, através de mapas. Basta observar o mapa africano atual para perceber a quantidade de linhas retas ou seguidoras de rios e montanhas. Sem saber o que estavam fazendo, retalharam o continente entre alemães, belgas, ingleses, italianos, espanhóis, franceses e portugueses:

Traçamos linhas sobre mapas de regiões onde o homem branco nunca tinha pisado. Distribuímos montanhas, rios e lagos entre nós. Ficamos apenas atrapalhados por não sabermos onde ficavam essas montanhas, esses rios e esses lagos. ( Lord Salisbury, líder colonialista inglês)

Apenas 4 países ficaram livres da dominação europeia (mas nem por isso deixaram de sentir os efeitos):

EGITO – não foi dominado diretamente, mas era protetorado inglês e foi governado indiretamente por Londres mesmo após sua independência oficial.

LIBÉRIA – protetorado norte-americano

ÁFRICA DO SUL – holandeses e grupos calvinistas europeus instituíram o núcleo dos boer ou africâner, população descendente dos colonos europeus que roubaram terras e escravizaram populações locais e que mais tarde assumiram o controle político sobre a África do Sul introduzindo um sistema de discriminação e dominação branca chamado apartheid, abolida completamente em 1994.

ETIÓPIA – o país foi o segundo Estado a adotar oficialmente o cristianismo, antes mesmo de Roma, e resistiu à invasão árabe no século VII, aos missionários católicos portugueses no século XVI e uma primeira tentativa italiana no final do século XIX.

TEXTO VII - baseado no livro Memórias D'África (Carlos Serrano, ed Cortez)


VII RESISTÊNCIAS E LUTAS PELA INDEPENDÊNCIA, DESAFIOS E OPORTUNIDADES


No final das contas, o predomínio tecnológico de armas e metralhadoras não permitiu uma luta igual entre africanos e europeus, e permitiu apenas marcar oposição baseada, muitas vezes, na coragem, contra os europeus. A colonização europeia deixou também alguns resquícios que podem ser vistos como benefícios, como uma malha ferroviária, estradas, pontes, linhas de telégrafo e portos capazes de receber navios de grande peso. O aprendizado de línguas europeias foi obrigatório da noite para o dia porque tais línguas tornaram-se oficiais. Escolas e hospitais foram erguidos e algumas doenças epidêmicas foram erradicadas. Mas todos esses aspectos “positivos” só foram criados por europeus por sua necessidade, sem visar os súditos africanos.

Assim, apesar da conquista do continente ter sido justificada em nome de uma “civilização”, não foi assegurada qualquer transferência de conhecimento tecnológico e científico. A implantação de escolas, quando ocorreu, procurou organizar mentalmente o africano para ser colonizado e pacificado, onde o essencial não era o entendimento da realidade daqueles sujeitos, mas antes usá-los como objeto de uma ideologia, a Europa como centro do mundo. É bom que se diga, algumas potências europeias nem estavam em condições de transmitir algo referentes à escolas, como o caso de Portugal, que, em 1878, somava 82,4% de analfabetos no país.

A tomada de consciência de que esse regime era ilegítimo, inaceitável e propenso a barbaridades de todo tipo que induziu nos africanos o desejo de colocar fim na dominação colonial. Assim o continente assistiu à lutas por independência.

Négritude foi um movimento político-literário que ganhou força no século passado. Os escritores pertencentes a esse grupo tinham em comum a rejeição à dominação colonial francesa, a ênfase na solidariedade e na união do mundo negro e a denúncia do racismo.

O Pan-africanismo é outro movimento político, crítico do racismo e do colonialismo, tendo como objetivo a libertação e unificação dos africanos. Esse movimento começou primeiro com os afrodescendentes nas Américas – principalmente EUA e Caribe. A motivação era a unidade do mundo negro em sua totalidade, focando a releitura da África e resgate das origens culturais. Assim temos artistas, escritores e intelectuais como Bob Marley (Jamaica), Abdias Nascimento (Brasil), Walter Rodney (Guiana) e Malcom X (EUA). O Pan-africanismo encontrou forte enraizamento no continente africano também.

De modo geral, uma elite africana, surgida na época da colonização com o contato com os europeus, assumiu o papel de testas de ferro dos europeus, atuando reproduzindo os padrões culturais das ex-metrópoles. Desse modo, o colonialismo se transformou num movimento mais sutil, o neocolonialismo. Agora, a dominação não é mais através de armas, mas através de empréstimos, colonização cultural e controle de mercado.

O resgate das religiões tradicionais é uma das formas possíveis de retomar suas formas de vida e assim os africanos podem pensar em desenvolver suas economias, como a recuperação das técnicas da construção de terra batida, mais ecológicas, baratas e termicamente eficientes do que os modelos que tomam por referência as tecnologias vindas da Europa. A África, apoiada na tradição, pode refazer a sua compreensão do mundo, repensando criativamente o passado e seu futuro.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

EntrevistaA Trilha da Democracia
O sociólogo Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira alerta que a sociedade tem um longo caminho para decantação de força e isso não se faz do dia para a noite
Por Sucena Shkrada Resk -  Revista Sociologia


Por Sucena Shkrada Resk
Para o sociólogo e pós-doutor em Ciências Sociais, pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, o pernambucano Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira, a leitura da democracia e da cidadania não pode perder de vista o processo histórico. “As estratificações não representam a verdade absoluta das desigualdades”, disse durante entrevista à revista Sociologia. Com um olhar crítico, e ao mesmo tempo ponderado, sobre os fenômenos sociais sob o contexto da crise econômica desencadeada em 2008, ele analisa que somente quando a sociedade intervém nos processos da nação e do Estado existem, de fato, transformações – que não podem ser virtuais.

Radicado há 40 anos em São Paulo e após duas décadas de docência na Universidade de São Paulo (USP), até hoje ele participa do Centro dos Estudos dos Direitos à Cidadania (Cenedic), na Faculdade de Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), do qual é fundador e coordenador científico. Com essa bagagem, analisou, durante o bate-papo, o panorama mundial da democracia, tratando de temas atuais, como a Primavera Árabe e o movimento Ocupe Wall Street.

COMO VOCÊ ANALISA A PERFORMAN CE DO BRASIL NAS ÚLTIMAS DÉCA DAS, COM RELAÇÃO AO PROCESSO DEMOCRÁTICO?
Diante das definições formais, pode se dizer que estamos numa democracia, pois quando se trata de todas as funções dos níveis de governo, há alternância do poder, existem partidos políticos e as eleições são legítimas e não são fraudadas. Antigamente, “nós de esquerda” dizíamos que era uma democracia burguesa, mas mesmo esta dá garantias em que o cidadão pode se expandir. No entanto, a democracia no mundo todo avançou muito pouco. Na verdade, ela se resume aos aspectos acima e é, de certa forma, delegada. Os eleitores votam de quatro em quatro anos, delegam os poderes e não intervêm mais nos processos da nação e do Estado. Somente a Suíça e alguns estados norte-americanos avançaram, nesse sentido, fazem referendos periódicos com a população. Aqui no Brasil, apesar da Constituição prever, não houve consulta popular. De maneira geral, a democracia política no mundo tem uma definição clássica de oligarquia. Os políticos profissionais manejam a política institucional, sem intervenção do público, das classes de fora. É um sistema que precisa ser muito aperfeiçoado, para que se transforme em algo real, ou seja, para que a minha, a sua opinião intervenham efetivamente nos negócios do Estado.

NA PRÁTICA, O QUE REPRESENTA A CIDADANIA, NO CONTEXTO DE UM PAÍS EM DESENVOLVIMENTO COMO O NOSSO?
Cidadania é poder exercer seus direitos. Os direitos não são naturais, são criações cívicas e urbanas, são construções exatamente da cidadania. Antigamente eram circunscritos aos princípios básicos de votar. Hoje é muito mais, há os direitos sociais, trabalhistas e civis. A democracia, nesse sentido, avança, criando esses novos campos; é ter a capacidade de exercer plenamente tudo isso. Representa um ideal muito mais do que uma coisa real, mas é importante. Ninguém pode ser

"Cidadania é poder exercer seus direitos. Os direitos não são naturais, são criações cívicas e urbanas, são construções exatamente da cidadania. Antigamente eram circunscritos aos princípios básicos de votar. Hoje é muito mais, há os direitos sociais, trabalhistas e civis"

preso sem acusação formal, por exemplo, mas muitas vezes isso acontece. Todos têm direito a um defensor, mas, na prática, a maior parte dos pobres não tem. Por outro lado, no campo trabalhista, há uma série de direitos, que foram uma conquista e uma criação: você não pode ser demitido de seu emprego, sem aviso-prévio. Antigamente, no Brasil, com 10 anos de serviço a pessoa não podia mais ser mandada embora. Há mais de 40 anos, surgiu o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Felizmente são direitos que ainda existem. Já os direitos humanos são os mais difíceis de definir, porque praticamente tudo é direito.

PELO FATO DE O PAÍS REGISTRAR CER CA DE 16,2 MILHÕES DE BRASILEIROS NA EXTREMA POBREZA, COMO VOCÊ AVALIA AS CONDIÇÕES DESSAS PES SOAS COM RELAÇÃO À CIDADANIA?
Essa é uma faixa importante da população, em que o direito é apenas uma miragem. O básico e elementar é comer, quando não têm acesso a esse direito, não conseguem ter pleno exercício da cidadania. A linha da pobreza, na verdade, é um artifício estatístico para estratificar a sociedade em setores de renda e identifica que a sociedade brasileira não teve capacidade de incluir essas pessoas. Isso mostra que a democracia real está longe de ser alcançada.

ESSA SITUAÇÃO REPRESENTA OS EFEITOS DA CRISE DO CAPITALIS MO, E EM ESPECIAL, DA CRISE ECONÔMICA ATUAL?
A crise econômica atual foi desencadeada em 2008 e estourou nos Estados Unidos; a Europa está passando também por uma crise de grandes proporções e a solução não avança. A dos anos 30, por exemplo, deu espaço a reações da sociedade, do Estado e avançou em medidas do chamado estado do bem-estar, que era exatamente para tirar os cidadãos do “azar”. A economia capitalista é muito dinâmica, mas a moral foi abolida dela. A sociedade criou instituições capazes de proteger as pessoas, as classes e as populações contra as mazelas dessa economia. Agora, está havendo uma gradual regressão desses direitos. Isso é um movimento mundial, com diferentes repercussões nos países.

MESMO ASSIM, PODE -SE DIZER QUE O BRASIL, NESSE CONTEXTO DA CRISE ECONÔMICA, ESTÁ SE SAINDO BEM?
Não está se saindo bem. Existe um discurso ufanista, que deve ser criticado. Não há motivo para esse ufanismo. Os

Discurso ufanista » Quanto ao bem-estar e renda, não há nada absoluto. Nossa sociedade ainda é profundamente individual e está entre as mais desiguais do mundo. Aqui não é a África ou a Líbia, por exemplo, onde há forças tribais. Aqui existe uma sociedade capitalista, que não é regida por critérios regionais, familiares ou patriarcais. Hoje o que vale é o mercado. Essa sociedade não demonstra a capacidade de ir mais além.
 números são enganosos. Há uma linha de pobreza definida por critérios econômicos e que tentam levar em conta outros fatores. Os critérios estatísticos não dizem tudo, e o Brasil está entrando no discurso de que “‘superamos a pobreza” e agora é combater a miséria. Todos são conceitos relativos, dependem do conjunto da sociedade. Você pode ter superado a linha da pobreza, mas se outros extratos sociais continuam bem acima de você, continua pobre.

DIANTE DESSE QUADRO, ENTÃO, AS PERSPECTIVAS SÃO DE QUE A SITUAÇÃO PIORE?
Não necessariamente. O que quero dizer é que tudo é relativo. Uma sociedade muito rica, como a dos Estados Unidos, continua tendo pobres. O choque do capitalismo é excludente e o Brasil precisa criar proteção contra ele, com medidas de bem-estar, de segurança no emprego, habitacional. Isso não quer dizer transformar o Estado em policial, mas fazer com que a sociedade seja capaz de exercer a cidadania. É algo complexo. Há cidadãos extremamente ricos no Brasil e no mundo que não deveriam ser considerados cidadãos, nos critérios democráticos e republicanos, pois usam a sua riqueza para explorar os pobres e se ostentar perante a sociedade e debochar dela.

COMO AVALIA O FÓRUM SOCIAL MUN DIAL, ENQUANTO MANIFESTAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL?
É um espaço que promove a cidadania, mas já perdeu força, ficou um pouco desfocado. Não sei se conseguirá ter vigor de restabelecê-la. Cheguei a participar de duas edições, em que vivenciei um ambiente com vozes múltiplas, sem vozes partidárias. Experiências positivas. Cabe à sociedade inventar e reinventar novas formas de estar presente, de atuar e de chamar atenção.

NO BRASIL, CHEGOU TAMBÉM O MOVIMENTO MUNDIAL DOS INDIGNA DOS, E NO CHILE, POR EXEMPLO, OS ESTUDANTES PROTAGONIZAM GRAN DES MANIFESTAÇÕES PELA QUALIDADE E ACESSO DO ENSINO. O QUE TEM A DIZER A RESPEITO?
Os movimentos de mudanças são muito complexos para se resumirem a um simples protesto e ocupação das ruas. Isso já é um sinal positivo, de que a sociedade sai de sua passividade, dessa coisa dos brasileiros de aceitar tudo, mas não quer dizer que haverá mudanças profundas em curto prazo.

QUAL A SUA ANÁLISE SOBRE AÇÕES DE MOVIMENTOS, COMO DA PRIMAVERA ÁRABE E DO OCUPE WALL STREET?
Representam uma reação positiva contra os lados negativos do capitalismo. Ninguém imaginaria que o Wall Street, um polo financeiro mundial, concentrado nos Estados Unidos, tivesse o movimento Ocupe Wall Street. Presumivelmente, lá seria um lugar da bonança, da felicidade. As pessoas estão se dando conta de que na democracia formal é necessário conquistar mais coisas. É preciso que as classes sejam capazes, por meio das organizações, de intervir no negócio do Estado. A Primavera Árabe ainda se apresenta de forma dúbia, ambígua de estados absolutistas, para lá de feudais, sendo a maior parte deles teocráticos. Lá existem sociedades muito complexas, em que não se pode entender tudo em “preto e branco”. Têm uma cultura milenar, que nós (ocidentais) não compreendemos muito bem. Mesmo com toda a introdução do fenômeno das redes sociais nesse movimento, as informações que temos sobre elas são parcas e pouco profundas, de modo que a única coisa que se deve fazer é saudar com alegria essas novas perspectivas, mas quem disser que vê mais do que isso está chutando.
QUAL A SUA PERSPECTIVA PARA A CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DESENVOLVIMENTO SUSTEN TÁVEL RIO+20, EM JUNHO, 20 ANOS DEPOIS DA ECO 92?
A ECO-92 foi muito positiva, ajudou a criar uma nova mentalidade no Brasil e no mundo sobre meio ambiente. Isso representa melhorias da sociedade por ela mesma, mas que não foram tão decisivas quanto se pensou que seriam. Já a Rio+20 será um bom momento para celebrar e para criticar, cobrar e propor mecanismos reais capazes de atingir os objetivos do encontro.


Redes sociais » Não acredito que esse mecanismo substitua a ação concreta nas ruas e nas instituições; é um elemento a mais de comunicação. Não sou muito afeito às redes sociais, não sei manejá-las. O Ocidente deveria aprender que mais comunicação não quer dizer mais democracia necessariamente. A reação virtual e efetiva deve se retroalimentar, para ver se podemos mudar as coisas.

"Os critérios estatísticos não dizem tudo e o Brasil está entrando no discurso de que “superamos a pobreza” e agora é combater a miséria. Todos são conceitos relativos, dependem do conjunto da sociedade. Você pode ter superado a linha da pobreza, mas se outros extratos sociais continuam bem acima de você, continua pobre"


O BRASIL TEM UM PAPEL ESTRATÉGI CO POR SEDIAR O EVENTO?
Quanto ao Brasil novamente sediar o evento, é preciso alertar para que não se percam as diretrizes, por causa do crescimento econômico e sua posição favorável no cenário internacional. Pelo fato de o país ser a principal economia da América Latina, devemos aprender que temos risco de nos tornarmos imperialistas na região. Deveríamos ter aprendido a lição, com a Inglaterra, com a França e os Estados Unidos. O nosso balanço de força com os demais países é desproporcional. Só temos uma relação menos desigual com a Argentina. É bom aprender com a História.

"É preciso fazer com que a sociedade seja capaz de exercer a cidadania. É algo complexo. Há cidadãos extremamente ricos no Brasil e no mundo que não deveriam ser considerados cidadãos, nos critérios democráticos e republicanos, pois usam a sua riqueza para explorar os pobres e se ostentar perante a sociedade e debochar dela"

A CHINA HOJE É UM PAÍS QUE ASCEN DE DE FORMA RÁPIDA NO CENÁRIO MUNDIAL. ISSO SE DÁ TAMBÉM NA DEMOCRACIA?
Hoje o país é uma China “capitalista”, com a manutenção de um sistema político ditatorial muito fechado. China e Índia, respectivamente, fizeram uma revolução capitalista dentro do capitalismo. Parte

Aprender com a História » O Brasil está com um posicionamento estratégico, hoje, por causa do fator econômico, e não por causa de suas virtudes democráticas. Vale lembrar que uma das batalhas mais sangrentas do mundo da qual o país participou foi a Guerra do Paraguai, e não aprendemos nada com relação a isso. A situação chegou a um nível tão obsceno, que o incesto chegou a ser autorizado no Paraguai (mãe casando com o lho), devido à eliminação da população masculina por conta do confronto.

Celso Furtado » Era um servidor da República como poucos. O cuidado com a coisa pública era notório. A sede da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) era em Recife e ele tinha direito de receber diárias quando se deslocava com frequência para o Rio de Janeiro a trabalho, mas nunca as reivindicou. É pelas pequenas coisas que se percebe o espírito republicano.

da crise mundial é decorrente disso. O centro de gravitação mundial mudou para o Oriente, para dois países antigamente pobres, apenas importantes do ponto de vista populacional e pouco representativos, do ponto de vista econômico. Hoje são extremamente estratégicos economicamente. Espero que ambos não sejam tentados a transformar força econômica também em militar, porque aí repetiriam desastres anteriores de hegemonias como Estados Unidos e Inglaterra.

VOCÊ TRABALHOU DURANTE MUITOS ANOS COM CELSO FURTADO (1920 -2004 ). O QUE PODE DIZER SOBRE ESSA EXPERIÊNCIA?
Ele refez as Ciências Sociais no Brasil e a reinterpretação do país, depois do aparecimento dos seus livros clássicos, como a Formação econômica do Brasil. Deixou sua marca entre os grandes pensadores nacionais.

Celso Furtado orientou a política brasileira praticamente por quatro décadas, que só veio a mudar com o neoliberalismo de Collor e de Fernando Henrique Cardoso. Portanto, ele não foi nada incompreendido e malsucedido. Posteriormente, o seu pensamento foi misturado a outras forças sociais e políticas, por força do processo histórico. Suas diretrizes de política de industrialização foram seguidas pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) da Organização das Nações Unidas (ONU), da qual foi diretor.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

liberdade religiosa


Entrevista  Humberto Maturana
Humberto Romesín Maturana é Ph.D. em Biologia (Harvard, 1958). Nasceu no Chile, estudou Medicina (Universidade do Chile) e depois Biologia na Inglaterra e Estados Unidos. Como biólogo, seu interesse se orienta para a compreensão do ser vivo e do funcionamento do sistema nervoso, e também para a extensão dessa compreensão ao âmbito social humano. É professor do Departamento de Biologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Chile. Prega a Biologia do Amar e do Conhecer para a formação humana. Sustenta que a linguagem se fundamenta nas emoções e é a base para a convivência humana. Fundou, em Santiago, o Instituto de Formação Matríztica, um espaço relacional que favorece a ampliação da compreensão de todos os domínios de existência humana, desenvolvendo estudos sobre a Biologia do Amar e do Conhecer, por meio de cursos, palestras e oficinas de conversações operacionais e reflexivas sobre a Matriz Biológica da Existência Humana.
Esta entrevista foi concedida aos Professores Mércia Helena Sacramento e Adriano J. H. Vieira, durante o seminário comemorativo dos 10 anos do Mestrado em Educação da Universidade Católica de Brasília.

Revista Humanitates – O senhor afirma que o ser humano é o resultado de transformações anatômicas e fisiológicas que ocorreram em torno da conservação do viver no conversar. O que é o conversar?
Humberto Maturana – O conversar é um fluir na convivência, no entrelaçamento do linguagear e do emocionar. Ou seja, viver na convivência em coordenações de coordenações de fazeres e de emoções. Por isso é que digo que tudo o que é humano se constitui pela conversa, o fluxo de coordenações de coordenações de fazeres e emoções. Quando alguém, por exemplo, aprende uma profissão, aprende em uma rede de conversações.
RH – O senhor costuma usar os termos linguagear e emocionar, qual o significado destes termos?
HM – Tenho transformado os substantivos linguagem e emoção em verbos, para fazer referência, para conotar que aquilo que eles significam ocorre no fluir do conviver. Não são coisas, não são elementos isolados porque ocorrem no fluir, a linguagem ocorre no fluir do linguagear. Não está na palavra, não está no objeto, está no fluir do viver em coordenações de coordenações. O mesmo ocorre com a emoção.
RH – O senhor diz que a maneira de conviver conservada geração após geração, desde a constituição de uma cultura, como linhagem, é fundamentalmente definida pela configuração do emocionar. Como se explica isso?
RH – As emoções definem o espaço relacional no qual ocorrem nossas ações, o que se diz, pela linguagem. Então, o mesmo gesto, o mesmo movimento vai ter um caráter ou outro segundo a emoção que o origina. O mesmo discurso vai ter um caráter ou outro segundo a emoção a partir do qual ele foi gerado, de onde ele se faz. As culturas são redes fechadas de conversações que produzem a configuração do emocionar, é nessa rede fechada de conversações que vai formar o caráter da cultura. Por isso é a emoção que guia, no fundo, o fluir histórico.
RH – Qual a importância das emoções na evolução humana?
HM – As emoções são centrais na evolução de todos os seres vivos, porque definem o curso de seus fazeres: onde estão, para onde vão, onde buscam alimentos, onde se reproduzem, onde criam seus filhotes, onde depositam seus ovos, etc. Bem, com os seres humanos ocorre exatamente a mesma coisa. O emocionar, o fluxo das emoções, vai definindo o lugar em que vão acontecer as coisas que fazem no conviver. Então, se uma pessoa se move, por exemplo, a partir da frustração, isso vai definir continuamente o espaço relacional na qual se encontra e o curso que vai ter seu viver. Se vive a partir da confiança, vai seguir um curso distinto. Assim, portanto, o que guia o fluxo do viver individual são as emoções e na constituição evolutiva também. É o emocionar que se conserva de uma geração a outra na aprendizagem das crianças.
RH – Como educar uma criança para que ela se torne um adulto socialmente responsável?
HM – Numa educação amorosa, que vê a criança, que a escuta, que a acolhe com respeito. Uma educação que traz consigo à criança, a confiança em si mesmo e o respeito por si mesmo, é a educação que possibilita, portanto, a colaboração. A colaboração ocorre somente em um quefazer com outros, tendo respeito por si mesmo.
RH – O que é a biologia do amar e qual sua importância para o desenvolvimento humano?
HM – A biologia do amar é o fundamento biológico do mover-se de um ser vivo, no prazer de estar onde está na confiança de que é acolhido, seja pelas circunstâncias, seja por outros seres vivos. No caso dos seres humanos, isto é central na relação do bebê com sua mãe, com seu pai, com seu entorno familiar, que o vai permitir crescer como uma criança que vai ser um adulto que se respeita por si mesmo. Se você observa a história de crianças que se transformam em seres, chamemos assim, anti-sociais, vamos descobrir que sempre tem uma história da negação do amar, de ter sido criado na profunda violação de sua identidade, na falta de respeito, na negação de seu ser.
RH – Quando e como acontecem as mudanças culturais?
HM – As mudanças culturais ocorrem quando há as mudanças no emocionar que define as redes de conversação em que se vive. Em geral, estas mudanças culturais ocorrem simplesmente porque vão mudando as condições de vida e as pessoas vão mudando o que fazem, ou porque há situações experienciais que resultam, em nosso caso, em uma reflexão que nos leva a querer viver de outra maneira. Mas, o viver é sempre conservador. As culturas são conservadoras, de tal modo que uma mudança pode ser imperceptível, no sentido de que uma pessoa não se dá conta porque as condições de vida vão mudando, ou mudam as condições de vida sem haver mudança cultural porque o emocionar segue sendo o mesmo. Por exemplo, penso que seja o que acontece com a tecnologia da comunicação atualmente. Ou porque há situações que são comoventes, que faz com que alguém se pergunte porque está vivendo de um modo que não gosta, de estar vivendo num determinado momento.
RH – Quais são as diferenças básicas entre a cultura matrística e a cultura patriarcal ou matriarcal?
HM – A diferença básica reside no fato de a cultura patriarcal/matriarcal estar centrada nas relações de dominação e submissão, exigências, desconfianças e controle. De outro modo, uma cultura matrística, que vem a ser antecessora da cultura patriarcal/matriarcal, está centrada em relações de muito respeito e, portanto, de colaboração. Na cultura patriarcal/matriarcal não há colaboração. Quer dizer, pode haver, claro, mas o centro, o fundamental é a relação de dominação e submissão.
RH – Vivemos numa sociedade que promete a felicidade pelo consumo, pela posição social, por ter coisas. Esta mesma sociedade apresenta muitos sofrimentos. Estes sofrimentos nos indicam que precisamos mudar a cultura patriarcal/matriarcal, que incentiva a competição e o lucro, e retomarmos a cultura matrística?
HM – Veja bem, o sofrimento, como diz minha  amiga Ximena Dávila, tem uma origem cultural, é resultado do sentimento de ser negado no convívio. Então, é claro que é sinal de que estamos vivendo num mundo relacional que nos nega. Daí que necessitamos de mudanças, necessitamos criar novos espaços de convívio. E sem dúvida, isso tem a ver com a negação do que somos originalmente seres amorosos. 
RH – Como o senhor vê a democracia no momento atual?
HM – Eu penso que o que se passa com a democracia é que tanto está fundada na possibilidade de colaborar para um projeto comum de mútuo respeito como se vê ligada por outras dinâmicas emocionais que se entrecruzam com ela, que tem a ver com noções filosóficas ou políticas, mas que enfatizam justamente a competição ou a desconfiança e o controle. Ou seja, se estamos gerando um espaço de colaboração na convivência em que apareça a competição, será destrutor da própria colaboração. Agora, se estamos gerando uma democracia, ou se queremos viver uma democracia que seja essencialmente um espaço de colaboração de pessoas que se respeitam a si mesmas, em um projeto comum, que é a convivência democrática em que apareçam noções de competição ou atitudes de competição, dependendo, é claro, do grau desta competição, como por exemplo, em nossa cultura, neste momento, toda a visão do comércio que se associa ao estímulo da cobiça, é destruidora da democracia. Quando Jesus disse “não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo, não se pode servir ao dinheiro e ao amor”, aponta certamente isso. Mostra que servir ao dinheiro tem a ver com a cobiça. Por isso o jovem rico para entrar no Reino de Deus tem que desfazer-se de suas riquezas, abandonar seus apegos, porque o Reino de Deus é, de fato, amar. É a democracia. É o que nos diz, assim, o Evangelho.
Então, estas emoções se entrecruzam, por exemplo, toda a propaganda para transformar as crianças em consumidores é um estímulo para a cobiça. Provavelmente estas crianças serão adultos que vão cobiçar, porque cresceram na busca da satisfação de qualquer coisa que querem, sem ter consciência do que isto significa no espaço social, no espaço de convivência, por exemplo, de seus pais, que não necessariamente podem comprar tudo o que os filhos querem. Mas, os filhos exigem e exigem por que estão convidados a isso. A propaganda, neste caso, é a instrutora, em última análise, da consciência da criança, da legitimidade do espaço de convivência no qual as pessoas não têm tudo. Se tiver uma convivência amorosa não necessita ter tudo.
RH – Qual a importância do jogo para o desenvolvimento humano?
HM – O jogo é uma atividade que se realiza no prazer de ser feito, com a atenção posta no prazer de fazer a coisa, pelo fazer mesmo, não na conseqüência. A importância disso é que o jogo permite a colaboração. Permite a seriedade do fazer pelo próprio fazer, pelo respeito àquilo que se está fazendo, pelo prazer de fazê-lo e não pelas conseqüências que poderá ter. A criança, ao jogar, aprende um modo de viver cuja atenção não está nas conseqüências, mas está na responsabilidade do que faz. Claro que vão ter conseqüências, mas o central não são as conseqüências, mas aquilo que a criança está fazendo ao jogar. Se alguém aprende isso pode colaborar, pode estudar, pode fazer qualquer coisa com satisfação e com prazer. Por que o central não será o resultado, uma nota, não é o que vai ganhar com aquilo, mas o processo mesmo de fazer. Isso dá liberdade de ação. Não quero dizer que alguém não pode fazer nada pelo resultado, sim, pode fazer, mas vai fazer com a seriedade de respeitar o processo, não vai fixar-se nos resultados.
RH – O que o senhor diria a um professor de crianças, da educação infantil, por exemplo. Que mensagem o senhor deixaria a elas ou eles?
HM – Não traiam as crianças! Não prometa acolhê-los quando os vai desconsiderá-los. Não prometa que vai levá-los a brincar quando vai ordená-los que se sentem e fiquem quietos. Porque o que um professor faz, às vezes, sem dar-se conta, é claro, é freqüentemente trair as crianças em função do que ele quer que elas façam. Por um lado os acolhe, mas na realidade os distingue, então a criança vive isso como uma traição. Um menino que está chegando na escola infantil e o professor diz “venha aqui, você vai brincar com as outras crianças!” e depois que o menino aceita isso ele diz “Bom, agora fica sentadinho aqui!”, vive isso é uma traição. As crianças sabem exatamente quando alguém promete algo e não cumpre, e vivem isso como uma traição. Isso gera dor e produz sentimentos, por que é uma negação de nossa condição amorosa.


A biologia do amar é o fundamento biológico do mover-se de um ser vivo, no prazer de estar onde está na confiança de que é acolhido, seja pelas circunstâncias, seja por outros seres vivo.
...toda a propaganda para transformar as crianças em consumidores é um estímulo para a  cobiça.